Ao menino Alberto Ruschel, meu pai
( publicado no Jornal da Tarde, quando da morte dele)
Desde que meu pai morreu, muita gente até desconhecida, me pára na rua onde moro ou me telefona, perguntando como foi.
Sendo seu filho, e tendo estado quase sempre ao seu lado, posso desconfiar e arriscar uma tese:
Acho que foi pelo caminho do seu sonho – até porque sonho geneticamente igual e me abismo pelos mesmos abismos em que ele se abismava.
O Alberto era um “moita”, observador, pisciano, sensível, contador de “causos” amigo de seus amigos (quase sempre gente simples), um menino, assustado e surpreso com a vida (principalmente a sua ), um distraído apaixonado pelo simples.
Nos anos em que esteve afastado do cinema (agora, volto ao começo do papo tentando responder a quem perguntou como foi), pôde ser de volta o menino criado numa chácara dos arredores de Estrela, uma pequena e simpática cidade do interior do Rio Grande do Sul.
Enquanto foi “astro”, e como era distraído, andou procurando satisfazer às solicitações que as pessoas ao seu redor lhe faziam, mas, quando pode ser o menino, foi um menino e tanto.
Longe do cinema, ele morou num monte de lugares, dando broncas em quem estivesse por perto (até hoje na família, quando alguém ensaia uma, ouve logo, “Calma seu Alberto!”), fez quantidades de amigos, planejou milhares de planos, tomou cerveja, trabalhou em coisas estranhas, teve outro filho, arrumou quinhentas e vinte e oito tomadas (só na casa da minha irmã) e acreditou todo tempo na poesia das coisas simples que o comoviam.
Foi assim que sonhou com um bom cinema, com histórias boas e brasileiras, com algum incentivo do governo. Para isso, leu tudo o que encontrou sobre os nossos índios, sobre a retirada da Laguna, sobre os Muckers, sobre Santa Catarina e mais um montão de livros de escritores gaúchos, na maioria seus amigos.
E planejou, escreveu, pesquisou, procurou pessoas que pudessem interessar-se por seus projetos, acreditou nas gravatas e colarinhos.
Quando esmoreceu, preocupado, passou a reunir, e reuniu, os papeis para a sua aposentadoria. Onde estiver agora, deve estar tentando ainda, com as gravatas e colarinhos…
Pela televisão nunca teve respeito – aproveito para responder a outra das perguntas comuns. A escola dele, daqueles técnicos da Vera Cruz com quem aprendeu (“O cangaceiro” continua lindo! Vi agora no MIS numa homenagem que lhe fizeram, obrigado Renato Consorte e Fernando Faro…), aquele cinema feito com planejamento, sem improvisos, trabalhado, marcaram a sua concepção de representação.
Recentemente, numa roda de chopp em que estava também o Arley Pereira, outro grande amigo dele, soube de um fato que muito me chateou, mas que clareia bem o que quero contar.
Numa das tentativas para trabalhar em TV estava sendo dirigido (?) por um senhor, J. Marreco, e teve dificuldade em dar as falas de seu personagem. Foi humilhado publicamente pelo diretor e, acho, se fosse pela mão de outro (tem tanta gente boa) poderia ter sido aquela uma experiência melhor.
Ele não era mau ator, o mundo à sua volta é que era estranho, um mundo de pressa, de gritos, de improvisos “O capítulo vai amanhã!”.
Sei que ele devia estar nervoso. Uma pena! Ganhou o J. Marreco perdeu a televisão.
Nesse tempo todo viajamos muito pelo Brasil e, apesar de um certo mau-humor – um pouco estudado, coisa de quem não quer envelhecer – nos divertimos muito. Já contei que ele era distraído, então:
Estávamos indo de Goiânia na direção de Aruanã, para a fazendo de um outro seu “irmão”, o Guilherme Salvagni, quando entramos num posto de gasolina para reabastecer o carro e tomar um café. Na saída, ele dirigindo, sem perceber, voltou na direção de Goiânia. Fiquei quieto por uns cinqüenta quilômetros e ele, reorganizando sua cabeça – já que estava “indo para Goiânia”-, passou a ocupar-se com o horário do avião que ia pegar para São Paulo, os encontros que teria.
Se eu não tivesse avisado, e também levado uma bronca por ter demorado pra avisar, teríamos voltado… sem ter ido.
Ele gostava muito de deboches e, com seu espírito crítico, não deixava escapar nada, estava sempre arranjando um jeito de brincar e gozar as pessoas e situações em que se encontrava. nem que o ser gozado fosse ele.
De uns tempos para cá, seus males foram se agravando, a circulação, umas úlceras, nenhum regime alimentar, as noitadas de prosa, poesia e violão, estas coisas todas o foram enfraquecendo.
O Alberto viveu intensamente suas paixões, seus projetos e sonhos, nunca pretendeu entregar os pontos e, na noite anterior a madrugada em que morreu no Rio de Janeiro – Alberto Ruschel morreu no dia 17 de janeiro de 1996, cinco dias antes de completar 78 anos – ( e isso eu soube pelas gracinhas de pessoas que estavam lá para atendê-lo, a Aline e a Carla, mesmo com as fortes dores que sentia, quando precisava da Carla (uma moça vixxxtosa, gênero Global, bem carioca e de fala arraxxxtada), suavemente, a chamava.
– Vem cá minha novela, fica perto de mim.
Esse era o seu jeito de brincar, de fazer sua poesia, de ver um mundo cheio de abismos, mas também de planícies, bem gaúchas.
Do filho Beto!